A RONCA - parte 3

O tractor tinha as rodas no ar.
- Zé Augusto aceleraste a máquina?
- Ó João! Ó João, desengata o gancho, arreia a gadanha, passa o cabo por cima e engata de novo, homem!
O mestre gritava:
- A barca está pesada. Ainda estão aqui 150 cabazes de sardinha! Então? Cuidado com o cabresto senão está tudo desgraçado! - tínhamos que tirar o bojo para fora de água.
O Escarapela gritava impondo o seu autoritarismo e a sua responsabilidade:
- Ninguém mexe no peixe.
- Tá bom! Tá bom! Pára Zé ... pára. Quanto mais for para cima, mais tem que vir para baixo. O Estera que suba depressa com o fogaz. Põe-te no meio da barca ranhoso. É preciso explicar-te tudo tim-tim por tim-tim? Não escorre nada dessa cabeça de burro? Vá ... andem, andem.
No outro lado, o mestre, meu tio, gritava:
- Á zagarelho! Não se pode perder tempo. Sai ... sai já daí. Já não podes com uma gata pelo rabo e com um cigarro na boca. Tu e o Zé Gaiato! Vai ... vai anda; chega o peixe para a borda Zé.
- Á Fivelas, sabes como ele é e tás sempre a fazer o mesmo!
- Á ... á ... á ...
- Á merda. Merda é que há! Vai ali comprar um maço de cigarros Ritz. Mas vai num pé e volta no outro.
- Tá bem, não se apoquente.
Estávamos no Verão, mais propriamente no mês de Agosto. As noites estavam muito quentes. Um grupo de jovens acompanhados com francesas queriam comprar peixe.
- Á Joaquim, tira algumas sardinhas para a areia! Se vier 20 escudos, são 10 mérrés pa cada um. Isto só acontece no Verão! No Inverno é fome para comer tudo.
- Vai agora que ele está distraído! Vai ... já chega, já chega.
As mulheres acartavam o peixe. A água nos cabazes para a sardinha pingava-lhes os pés protegidos por uma capa preta.
- Estou morta! - dizia a Alzira. Quando chego àquela areia mole ... ai as minhas pernas! Noites inteiras e dias inteiros para ganharmos um tostão.
A azáfama não parava. Desde que o Sol se punha até à aurora matinal. Ninguém parava, nem para tomar um pingo de café. De manhã era pior ainda, com a presença dos senhores da Guarda Fiscal e da Polícia Marítima.
- Quantos cabazes poderão estar aí? - perguntou o A. Vapor, sempre sentado na ré da barca com os pés pousados na pleia.
- Á ... á Ti Tonho, t...t...tá aqui uns cinquenta cabazes. É mais meia hora de trabalho.
- Comecem a arrumar alguns dos cabazes dentro da barca. Não se pode perder muito tempo. O Verão são dois meses! - dizia o mestre.
O Estera, de tempos a tempos, mudava o fogaz quer para o braço esquerdo, quer para o lado direito. Agora era a nossa vez. A vez dos putos.
- Vá malta, olhem que ele é lixado! Aproxima aí esses cabazes ... espalha-mos por aí! Passa aí o balde e o vertedor para tirar um pouco desta água ensanguentada.
- Quem mandou? - perguntou o Carrão.
- Quem querias que fosse? Foi o mestre pá. Tá aí o João Abel?
- Não. Foi à cabana buscar uma lata com gasóleo.
Homens e mulheres iam e vinham, areia acima, areia abaixo.
- A barca está quase vazia, dizia um dos camaradas enquanto sacudia o boné ensopado pela água suja das sardinhas abundantes.
- Descarreguem o resto do peixe para os vossos pés. Safam-se? Andem, dizia o mestre acrescentando que a madrugada não tardava. Estão a ouvir? Temos que nos safar enquanto o peixe está aí.
As carrinhas estacionadas na berma da estrada estavam carregadas com sardinha.
- Ó Zé Maria, diz ao Escarapela para contar os cabazes.
O João Abel tinha acabado de chegar naquele momento.
- Á João, gritou o Escarapela, vai à lota mais o João Alberto.
O tio António Vapor puxou do maço de tabaco que o Fivelas lhe tinha estendido à mão e levou um cigarro aos lábios e acendeu-o.
- Vamos a isto! Ponham um panal debaixo da proa da barca e banhem-no com sebo.
A maré tinha baixado na última hora e meia. Os cabazes que tínhamos transportado até à praia estavam todos arrumados e alinhados no interior da barca.
- Vamos rapazes! Vamos caso contrário...
O Zé Augusto encostou a gadanha à ré da barca enquanto esperava que o mestre desse a ordem do leva. Os sons das pequenas ondas faziam-se ouvir. O nevoeiro tinha-se dissipado. Via-se a traineira na bóia e o ruído da bomba de tirar água parecia o de um avião.
- Vai, vai ...


O Zé Augusto acelerou o motor e, de uma assentada, fez a barca penetrar na água. Uma remada certeira e harmoniosa fazia-se ouvir no dançar do remos. A praia, tal como as mulheres e os cabazes de peixe ficavam para trás. Víamos as luzes acesas, a traineira imóvel que esperava a barca com o contra-mestre e os "moços de terra" ... cada vez mais distantes!
Iniciava-se assim, uma nova etapa num ciclo interminável.

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