A RONCA - parte 1

Ela não pára de tocar! Não está nevoeiro, o vento está calmo e nada faz adivinhar, nas próximas horas, quaisquer sinais de mau tempo.
Não tenho sono! Porquê ficar deitado sem sono? São 2 da manhã.
A pesca findara com a avalanche de pedras à meia-noite em ponto. Desde então muito se alterou na forma, na vida e na orientação destas gentes da Nazaré e sobretudo na minha vida, cujo percurso nunca foi fácil. Muitas das minhas histórias foram passadas no mar. Qual a mais marcante? Talvez tenha sido aquela quando tinha 5 anos de idade!

Os pescadores olhavam-se como objectos esquecidos numa repartição qualquer de perdidos e achados. A ronca, emitia um som tão familiar que parecia adivinhar que estava condenado para a vida inteira.
O dinheiro tinha dado a volta à cabeça de toda a gente e, por todo o país, fazia-se uma cavalgada desenfreada para o encontrar. Por que motivo andei por onde andei? De que estórias é feita a minha história? Em que mar sem sal naveguei? Enquanto estivesse acordado tinha a certeza de que estava vivo e isso sempre me deu força para continuar.
Ouvia a televisão do vizinho até de manhã. Não cessava ... era como a ronca! Tocava, tocava, mas ninguém a ouvia. O vizinho estava doente há algum tempo, abandonado pela mulher que desaparecera sem deixar rasto. Quando era criança, chamavam-lhe o pescador de polvos. Adorava comer estes invertebrados que algumas peixeiras secavam, tal como nos dias de hoje, ao sol.
Passaram 50 anos. São 2 da manhã e não tenho sono! A ronca desperta-me a memória dos tempos longínquos. Aos 8 anos, caía de sono e a ronca não parava de tocar.
É rapaziada! Acima ... p´ra cima que o barco está a chegar! ... heeee ... porra! É pá, então ninguém se levanta? Tá tudo morto? Os da família são os piores! - dizia o Ti-Zé Maria, a quem chamavam de velho de terra. Tinhamo-nos deitado há uma hora atrás, contando com um repouso merecido até à madrugada seguinte.
Quando é que acaba o Mar e o peixe no Mar! - gritou o Estera, fatigado pelo trabalho penoso e duro de todos os dias e noites. Quase ninguém tinha consciência do que fazia. As necessidades comandavam o fio dos dias de sol-a-sol. Eu também queria ficar a dormir, mas quem é que consegue dormir num curral carregado de pulgas? O Estera estava cheio delas; andavam na camiseta, no pescoço, nas cuecas, ... Estão à espera de quê? Palácios do Czar? - somos apenas crianças e já nos mataram os sonhos, dizia o João.

Em todos os períodos da história da humanidade, proibiram os homens de sonhar!

(continua)

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